Michel
Foucault sustentou ao longo de sua investigação que no
processo de constituição e funcionamento das ciências
humanas, ao contrário do que normalmente se postula, não
houve descoberta de uma verdade específica do homem.
Seja
utilizada, a modo de exemplo, a psicologia objetiva do início
do século XIX. Segundo a história tradicional dessa
ciência, a verdade do homem louco foi finalmente
descoberta quando o conceito de loucura passou a ser pensado como
déficit das faculdades mentais e objetivado como doença
mental. Desde então, a verdade atual desse novo objeto
constitui critério fundamental para avaliar o que foi dito no
passado sobre a loucura.
Para
Foucault, a doença mental é apenas ponto de chegada,
jamais ponto de partida. Em vez de constituir a verdade final do
louco, ela funciona como o capítulo mais recente da
legitimação e justificação racional de
práticas históricas e contínuas de repartição
e distribuição daqueles indivíduos assim
desqualificados pela razão ocidental. O conhecimento analítico
da doença mental tem como condição um fundo
histórico obscuro e nebuloso de seqüestro do louco.
Entende-se porque o autor de Histoire de la folie (1972) toma
distância dos critérios tradicionais de legitimação
da verdade quando se refere às chamadas ciências
humanas: elas permanecem no interior das condições de
legitimidade do seu próprio conhecimento, não
descendendo ao solo histórico que as constitui.
História
política dos modos de veridição: eis como
Foucault nomeia sua investigação nos anos 1970. Ele
deixa de lado o balizamento da possibilidade dos enunciados
verdadeiros situados no nível da proposição,
para debruçar-se na dramatização da
enunciação, no acontecimento histórico de
sua produção. Renuncia interrogar a verdade a partir
das condições e limites do sujeito de conhecimento,
preferindo abordar os modos históricos de veridição
(FOUCAULT, 1981), a saber, mecanismos e procedimentos, estratégias
e táticas de poder que atuam na produção de
discursos qualificados como verdadeiros e na desqualificação
de outros, como falsos.
Ao
prescindir saber como um sujeito universal pode conhecer um objeto em
geral, indaga-se em que sentido os sujeitos são constituídos
pelos modos de veridição e por que a eles se
submetem. Abandona-se a meta de conhecer o conhecimento, determinar o
mecanismo das ilusões ou das ideologias, a economia interna
dos erros ou das faltas lógicas que puderam produzir o falso.
Sublinha-se como um modo de veridição pôde
emergir na história e em quais condições.
Procuramos
estudar na investigação de Michel Foucault os modos
plurais de obrigação mediante os quais os sujeitos se
vinculam com os discursos de verdade; especificar as regiões
às quais eles se aplicam e o domínio de objetos que
fazem surgir; identificar relações, conexões e
interferências entre eles estabelecidas. De modo especial, são
analisados os universos da loucura e do desejo. Contudo, evita-se
saber se o discurso dos psiquiatras é ou não
verdadeiro, se bem que tal problemática seja completamente
legítima; prescinde-se determinar a qual ideologia pertence os
enunciados dos psicanalistas e confessores, embora seja igualmente
uma questão interessante. Limita-se o trabalho na interrogação
dos modos de dizer verdadeiros e suas justificações,
quando se trata da enunciação do louco e da confissão
do pecador.
Verdade
e evidência
Nesse
item são envidados esforços para apontar como nas
práticas de enunciação do eu, conhecidas também
como práticas confessionais, tem-se como efeito de verdade a
formação das ciências humanas modernas, e como
efeito de poder, a sujeição da subjetividade. São
destacados os modos pelos quais os sujeitos são constituídos
a partir da obrigação de enunciar verdades sobre eles
próprios.
A
perspectiva de que a verdade vincula e obriga no ato de sua
enunciação normalmente proporciona estranhamento ao
discurso científico-filosófico. Para esse discurso, se
o indivíduo quiser ser operador da exteriorização
da verdade precisa deixar de agir em função de uma
obrigação. A verdade se basta ao elaborar sua própria
lei e seus critérios específicos, sem quaisquer
constrições exteriores. É pelo critério
da evidência que a manifestação do
verdadeiro e a obrigação que o indivíduo tem de
reconhecê-lo como tal coincidem. A evidência
constitui a demonstração por excelência de que
inexiste a necessidade de outro regime de verdade que se agregaria ao
verdadeiro. “O próprio verdadeiro constitui seu regime,
determina sua lei e me obriga.” (FOUCAULT, 1980) Como em Espinoza,
a verdade é index sui: somente o jogo entre o
verdadeiro e o falso indica o verdadeiro.
Conforme
Foucault, se a verdade é index sui não significa
que seja extensivamente rex sui e lex sui. Penso ser
esse um diferencial de sua perspectiva em relação à
idéia de verdade auto-referencial. Ele chega a afirmar que a
evidência é irredutível à ordem lógica
da constatação e da dedução da verdade e
do erro; ela também é produzida como evidência
pelo éngagement do sujeito racional. A verdade
deixa de ser detentora do direito a ser exercido sobre os homens e
das obrigações que eles têm diante dela; ela não
administra seu próprio império ao julgar e punir
aqueles que deixam de obedecê-la. “Não é
verdade que a verdade obriga apenas pelo verdadeiro”. (FOUCAULT,
1980)
A
verdade resulta ininteligível sem o éngagement do
indivíduo e sua sujeição consentida. De onde a
seqüência: “Se for verdadeiro, logo me
inclinarei”; “é verdadeiro, logo me inclino”; “é
verdadeiro, logo estou vinculado”. (IBID.)
A
conclusão anterior está distante da ordem da proposição
lógica que obriga efetivamente; pelo contrário, alguém
pode enunciar esse logo somente se atua como parceiro do
jogo do verdadeiro e do falso. Noutros termos, há na
proposição lógica um regime de verdade
mascarado cuja evidência é não-evidente
porque outro regime - aquele da demonstração lógica
- tem adquirido nas ciências e na filosofia poder de obrigação.
O
logo explícito cartesiano tem como único regime
de verdade sua força intrínseca. Contudo, por detrás
desse logo explícito há outro implícito
cujo regime de verdade é irredutível aos caracteres
intrínsecos do verdadeiro: trata-se da aceitação
de um regime de verdade.
Para
que um regime de verdade seja aceito e justificado é
preciso que o sujeito que pense seja qualificado. Ele pode
estar suscetível a quaisquer erros, ser iludido pelos
sentidos, estar submetido ao gênio maligno que o engana; no
entanto, permanece uma condição fundamental para
que o “penso, logo existo” tenha valor probatório:
é preciso que diante da evidência o sujeito submeta-se
àquele regime de verdade e, para tal, jamais ele pode ser
louco.
A
exclusão da loucura é condição
fundamental no regime de verdade que se impõe pelo poder da
evidência. Este precisa operar o esquecimento da exclusão
da loucura para que os indivíduos reconheçam-no como
evidente, sem questionar seu caráter obrigatório. Eis
uma das razões pela qual, na filosofia ou em qualquer outro
sistema racional, os loucos são excluídos a fim de que
não rejeitem aquele regime de verdade
científico-filosófico. A verdade resulta num jogo
vinculante: constrange e obriga na medida em que é imposta
como verdadeira, excluindo outras possibilidades.
Se
o regime de verdade científico-filosófico da evidência
tem como condição efeitos de poder que o
purificam mediante práticas excludentes, algo semelhante
ocorre com a formação das ciências humanas.
Significa que aquilo por elas denominado de objetividade está
condicionado pela história constringente e complexa de atos
de verdade que se impõem em função da
obrigação de dizer a verdade. Da imanência entre
regimes de verdade e efeitos de poder resulta a genealogia das
“políticas de verdade” (FOUCAULT, 1976, p. 81) em torno
das práticas confessionais. Examinar os atos de verdade
observados em tais práticas implica deter-se naquilo que eles
permitem legitimar, justificar e reproduzir.
Embora
quaisquer práticas coercitivas reclamem sua verdade não
é dela que se trata, mas dos efeitos de poder que ela
proporciona, tal como sua capacidade de justificar racionalmente
distribuições, classificações e
identificações. A peculiaridade das práticas
confessionais, abordadas a seguir, reside nisso: nelas a enunciação
do indivíduo sobre si mesmo figura como mecanismo operador da
verdade, na medida em que produz identidades sujeitadas.
Comentários
Postar um comentário
Deixe seu comentário ou sugestão!!!